Conheça sua memória
Clarisse Meireles
Fonte: http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernos/vida/2004/08/20/jorvda20040820006.html
O cérebro cataloga, arquiva e pesquisa, tudo ao mesmo tempo
Arte de Kiko sobre foto de Ana Paula Amorim Onde você estava no dia 11 de setembro de 2001? Fácil, não? Marcado por um episódio trágico como os atentados em Nova York, o dia será para sempre inesquecível. Agora, tente se lembrar onde estava um dia antes. Ou um ano depois. A não ser que seja a data de seu aniversário, dificilmente você vai conseguir. A distância não é o que importa, mas sim como e por que sua memória arquivou aquele momento. Graças ao impacto e seus desdobramentos, aquele se tornou um 11 de setembro especial, e sua memória arquivou-o para sempre. Mas como a sua memória decidiu isso? Como ela seleciona e hierarquiza as informações, guardando algumas e descartando outras tantas? Estes e outros mistérios de uma das funções mais fascinantes do cérebro são explicados pelo neurocientista Iván Izquierdo, pesquisador da UFRGS, em dois livros recém-lançados, Questões sobre memória (ed. Unisinos) e A arte de esquecer (ed. Vieira & Lent) (ver entrevista na pág.19).
Primeiro, é preciso entender como funciona a memória. E perceber que o esquecimento é uma de suas principais funções e responde a regras bem específicas que, pelo menos por enquanto, ainda não podem ser manipuladas, como ocorre no filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças . Ficção à parte, a memória traz em si um filtro poderoso que nos possibilita esquecer. Senão, enlouqueceríamos, lembra Iván Izquierdo.
A partir de observação clínica de pacientes com amnésia ou doenças degenerativas, a ciência dividiu a memória em vários tipos, segundo a duração e o conteúdo das lembranças. A mais efêmera chama-se memória de trabalho, ou memória on-line, que dura segundos ou minutos após um evento. É aquela usada para decorar um telefone da hora em que o número nos é passado até digitá-lo no aparelho. Ou que nos permite lembrar as primeiras palavras de uma frase até o fim da fala, de forma a criar um sentido.
Dura apenas o necessário para realizar uma tarefa. Estranho e inútil seria se até agora nos lembrássemos, por exemplo, da terceira palavra da primeira frase deste texto. Por ser imediata, confunde-se com a atenção. E é a mais atingida pela sobrecarga de informações, explica a neuropsicóloga Anita Taub, do setor de psicologia do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. O estresse também afeta a memória de trabalho, pois aumenta o nível de cortisol, que leva à morte de neurônios, completa.
Cada indivíduo tem, em média, 100 bilhões de neurônios, e cada um deles é capaz de fazer até 10 mil conexões com seus pares, para formar inúmeros circuitos diferentes. Parece um sistema infinito, mas não é. Felizmente, a mesma era moderna que nos bombardeia de informação cria um arsenal de muletas eficientes, que vai de post-its coloridos a palmtops e celulares com alarmes. Portanto, nada de se apavorar: o esquecimento é programado. Esta memória depende da atividade de neurônios localizados no córtex pré-frontal, bem atrás da testa, e não deixa traços bioquímicos.
Na era da informação, é fácil concluir que a queixa não parte apenas dos mais velhos. Em adultos que não apresentam doenças neurológicas e jovens, a queixa de memória ruim geralmente se deve a distúrbios de ansiedade ou estresse. Muitos jovens na fase de vestibular vêm ao consultório em busca de remédio para a memória, observa o neuropsiquiatra Ricardo Oliveira de Souza, professor da UNI-Rio.
Chama-se memória de curta duração aquela que dura de uma a seis horas. A aquisição de uma nova memória gera duas ondas de processos bioquímicos, uma logo após a aquisição, outra entre três e seis horas depois. Esta memória não requer síntese de proteínas, ao contrário das de longa duração. Esta, para ser permanentemente arquivada, promove modificações bioquímicas em diversas regiões cerebrais.
As memórias de longa duração podem ser subdivididas em declarativas e procedurais. Declarativas são aquelas que podem ser exprimidas verbalmente, e subdividem-se em memória episódica, de momentos marcantes, associados a estados emocionais; e memória semântica, um conhecimento memorizado ao longo da vida, mas que não está associado a um evento específico. Saber que a capital do Brasil é Brasília, por exemplo. É um fato que não iremos esquecer, mesmo que não possamos localizar quando o aprendemos.
Não-declarativa ou procedural é uma memória que também pode durar toda a vida, mas não pode ser verbalizada. Também são duas: a memória do condicionamento, por exemplo, é aquela que nos faz frear ao sinal vermelho. E a memória de hábitos diz respeito a atividades que, de tanto se repetirem, se tornam automáticas, como caminhar e andar de bicicleta.
O complexo sistema de catalogação, arquivamento e pesquisa ocorre incessantemente no cérebro, obedecendo a regras bastante sofisticadas. Três fatores colaboram para uma memorização eficiente, explica Rircardo Oliveira de Souza. A atenção, a motivação para realizar determinada tarefa, no caso de aprendizado, e a carga afetiva ou emocional.
Para ativar a memória, o cérebro funciona como uma orquestra, com seus vários componentes em harmonia, trabalhando juntos. É possível, no entanto, destacar algumas estruturas mais envolvidas em cada tipo de memória. É essa compartimentação que explica por que pessoas podem sofrer de amnésia, e não lembrar fatos recentes, mas sem afetar sua capacidade de falar ou dirigir, por exemplo.
Entre os transtornos psicossociais mais comuns, a depressão é um dos que mais afetam a memória, ao lado de abuso de drogas, incluindo o álcool. A depressão é considerada uma falsa demência, pois deprime o hipocampo, área central para a consolidação de informações, explica o professor de neurofisiologia da Uerj Sérgio Schmidt.
Vítima de uma depressão aguda, a dona de casa América de Souza, 69 anos, durante o tratamento, viu-se privada de memórias da infância, quando o natural é justamente o contrário. Com o passar dos anos, as lembranças mais antigas ficam mais nítidas do que as recentes, pois foram fixadas num tempo em que as conexões neurais funcionavam melhor, explica Sérgio Schmidt. Companheiro de América há 49 anos, Antônio Estevão de Souza, mesmo 10 anos mais velho do que a mulher, nunca teve problema de memória, e passou a funcionar como um back up dela. Em conversas cotidianas, ele a ajuda a lembrar de passagens que não presenciou, mas que já a ouviu contar diversas vezes.
Estevão atribui a boa forma de sua memória a uma vida muito ativa, cheia de ocupações. Ex-militar e ex-diretor de fotografia de dezenas de filmes do cineasta Jean Manzon, Estevão não se entregou ao ócio com a aposentadoria. Há oito anos, é síndico do seu prédio. Mantém-se ativo com atividades físicas diárias, informa-se sobre o que acontece no mundo, cozinha e trabalha com madeira. Quando sai à rua para sua caminhada diária no calçadão, encontra tempo para conversar com seus vários conhecidos, e para fazer novos amigos. O segredo é não perder o interesse pela vida nem pelo mundo, ensina.
Ele é a prova viva de que é possível manter a memória ao longo dos anos. E, para a tristeza dos que esperam soluções milagrosas para a memória, elas não existem. Só nossas mães acreditavam em Memoriol B6, brinca Schmidt, lembrando que nenhuma substância teve eficácia comprovada para melhorar a memória. E o gingko biloba? ''Tem ação antidepressiva. Portanto pode haver um benefício indireto, mas pesquisas indicam que há riscos, inclusive de hemorragia'', observa o médico.
Por fim, se você começar a esquecer onde pôs a chave, ou procurar os óculos que estão na cabeça, nada de alarme. Mas se o esquecimento for reiterado, sem causas externas conhecidas, justifica-se que se procure o médico, afirma Schmidt. E para garantir que sua memória tenha vida longa, uma dica. A melhor 'ginástica' para o cérebro é uma atividade intelectual prazerosa, completa Ricardo Oliveira de Souza.